Ela publica fotos de livros que leu ou está lendo, com
trechos marcados, páginas inteiras, um rabisco na margem ou mesmo só as capas, às
vezes acompanhadas de música, do horizonte visto pela janela, de uma xícara de
chá. Mas as minhas favoritas são as em que ela segura o livro, porque suas mãos
são muito, muito bonitas, ainda que isso seja verdade sobre absolutamente tudo
nela. Também gosto porque ela escolhe bem os trechos. Sempre anoto, procuro de
onde são, acabo lendo algum ou outro e acho que até entendo a maioria.
Não é surpresa
então, sendo o mundo cruel como é, que eu estivesse com um desses livros não
muito bons que eu gosto, ela não, quando demos de cara um com o outro – quer
dizer, demos de máscara – num dos cantos de um supermercado.
“Não
acredito que você ainda perde tempo com isso”, ela disse, mas de um jeito simpático,
sorrindo com os olhos escuros e um pouco, mas só um pouco grandes demais para o
rosto. Tinha pensado nela no dia anterior, justamente pelos olhos, quando três ou
quatro pessoas de máscara passaram pelo feed e ficou claro que nem todo mundo
que sabe sorrir com os olhos. Ela sabe e é de quebrar as pernas.
“Eu
tinha parado, mas não é culpa minha que agora os dias têm sessenta horas.”
“Duvido
que não seja culpa sua.”
“Ah é?”
“Desculpa,
é só que eu acho que todas as coisas ruins do mundo têm alguma participação
sua, nada demais.”
“Preciso
chamar meu advogado pra essa conversa?”
“Eu
chamaria.”
“Sorte
que ele mora aqui perto, então.”
“Espera!
Você tem mesmo um advogado?”
“Não,
mas talvez devesse. Com essa coisa de ferrar o mundo e tal.”
“É,
talvez devesse. É bom esse vinho?”
“Pelo
preço dele, é horrível. Mas com cinquenta por cento de desconto é ótimo.”
“Bom
saber. Onde ficam os vinhos aqui?”
“Eu te
levo.”
Ela já tinha cervejas no carrinho
e o supermercado não tem mais do que quatro corredores, era impossível que não soubesse
onde ficavam os vinhos, então evitei ir embora até ela terminar as compras, colocando
coisas desnecessárias na minha cesta. Ainda não sei o que vou fazer com aquele limpa
alumínio. Eu não tenho alumínio. Passamos pelo caixa e tomamos a mesma direção
na rua. Dez segundos depois, a garoa leve virou chuva apertada e paramos
embaixo do toldo de um restaurante fechado, na esquina.
“Toda
vez. Maior tempo fechado, eu penso que é só uma corridinha até o mercado e não
pego o guarda-chuva. Aí chove e eu fico ilhada.”
“Ou
arrisca, chega encharcada em casa e o tempo de subir de elevador é suficiente
pra chuva parar.”
“Sim!
Que raiva!”
“Você tá
morando aqui perto?”
“Aqui na
rua de trás, faz mais de dois anos.”
“Que
bizarro a gente não ter se encontrado antes.”
“Verdade.
Bom, eu te vi uma vez no metrô, descendo pela escada rolante. Eu tava subindo
pela normal. Você não me viu, ou fingiu que não viu.”
“Não vi.
Talvez eu fingisse se tivesse visto, mas não vi.”
“Você
fingiria?”
“Talvez.
E não faz essa cara. Não é tão horrível assim, sabe? Eu tenho um amigo, um
conhecido, amigo de uns amigos, que trabalha por aqui. Vira e mexe a gente se
encontra na rua e aí para, joga um pouco de conversa fora, fala de marcar uma
cerveja que obviamente nunca acontece... Um dia a gente parou de falar na
cerveja, a conversa jogada fora foi diminuindo até chegar naquele ‘e aí,
beleza’ que você nem para de andar, depois virou só um aceno de longe, com a mão
e hoje em dia às vezes a gente simplesmente se ignora. Não se a gente estiver
na mesma calçada ou se tiver contato visual, porque a gente é educado. Fingir
que você não viu uma pessoa pode acabar dando trabalho, mas às vezes é o mais
fácil.”
“Meu
deus! Essa palestra toda só pra explicar que você fingiu que não me viu?”
“Mas eu
não vi!”
“Para,
antes que fique feio.”
Depois de dias sem uma única
conversa que não fosse por texto ou áudio, eu queria ficar ali o quanto
pudesse. Mas foi ela quem colocou as coisas no chão, sentou no degrau da porta
do restaurante e me disse para sentar também, mesmo com a chuva já bem mais
fraca. E ali estávamos, a distância regulamentar e uma dúzia de sacolas entre
nós, os rostos cobertos com máscaras e eu me convencendo a oferecer uma cerveja,
quando uma senhora virou a esquina, observou a cena e anunciou: “Um casal
protegido e muito bonito. Parabéns!” Eu juro que um dia vou perder a cabeça.
Por que
as pessoas dizem isso? Sério. E raramente quem ouve é de fato um casal. Se eu
pudesse proibir uma frase, eliminar mesmo da língua portuguesa, seria “vocês
são um casal muito bonito”. Isso e “inveja branca”. E “eu tenho pra mim que...”
“Eu tenho pra mim que” é foda. E essas porras de “ver verdade” em algo e “vir
de um lugar de qualquer coisa”. Mas enfim, vocês não estão preparados pra essa
conversa.
Ela
esperou a velha atravessar a rua antes de falar, o tom mais sério, mas os olhos
sorrindo um pouco.
“Você
não pode reagir assim.”
“Assim
como?”
Ela usou
minhas palavras exatas. “É verdade, né minha senhora? Às vezes a gente quase
esquece, mas somos um belíssimo casal mesmo. Muito obrigado!”
“Bela
imitação.”
“E todo
sorridente ainda! Era pra ficar constrangido, esconder a cara no chão de vergonha.”
“Ei, eu
tenho vergonha.”
“Não
pareceu.”
“Os dias
têm sessenta horas! Espera eu chegar em casa pra você ver.”
“Dias?
Plural?”
“Todo dia. Mesmo quando eles tinham
só vinte e oito horas.”
Uma hora o assunto ia chegar.
Maldita velha.
“Você fez muita merda.”
“Eu sei.”
“E nunca nem tentou pedir desculpa.
Nem hoje.”
“Eu sei. Não tinha por quê.”
“Não?”
“Não. Até porque você não suspendeu
a vida esperando desculpas. É péssimo isso, mas quando era importante pra você,
eu não ligava. E quando eu percebi que devia dizer algo, não fazia mais
diferença pra você e só serviria pra eu me sentir melhor comigo mesmo e com a
situação toda. Mas nem isso, porque eu não ia deixar de me sentir mal ou de ter
vergonha, então não tem por quê.”
Eu obviamente já tinha pensado nisso
tudo antes. Não sei quantas centenas de vezes tive essa conversa comigo mesmo.
“Fora que se eu pedisse desculpas
aqui hoje você ia me mandar pro inferno.”
“Mas com certeza. E é pra você se
sentir mal, mesmo.”
“Pode ficar tranquila.”
Ela respirou fundo, olhando a
chuva. Devia ter pensando bastante também em como seria essa conversa, se
acontecesse um dia, e quando chegou a hora viu que não fazia mais diferença. Eu
acho.
“Pra quem lê esses malas aí que
você lê, até que você consegue pensar direito, às vezes.”
“Eu sei! Essa coisa de toda não
ser um problema fingir que não viu alguém, que conceito, né?!”
Então ela me mandou pro inferno,
nós rimos um pouco, brincamos sobre marcar novos encontros no supermercado e
decidimos continuar a conversa cada um na sua casa. E tem sido assim. Quem sabe
depois do próximo supermercado a gente não vire juntos a esquina, em vez de
seguir cada um para um lado? Ela já disse que quer, eu dei a entender que poderia
ser legal. Acho. Mas não precisa dizer, ela sabe. Falamos dia desses de um que
poderíamos assistir lá, se eu fosse, mas eu acabei assistindo sozinho por aqui.
Não tinha mais nada passando. Também não é certeza que eu vou. E na sexta meus amigos
querem fazer uma chamada de vídeo, já que não tem bar, e eu não sei como seria
com ela junto. É ok eu ficar na sala com ela no quarto, ou o contrário? É minha
primeira pandemia. E tem isso também, não é certo eu ir pra lá na quarentena,
né? Ficar em casa, isso e aquilo. Não sei se é uma boa ideia. Preciso ver isso
direito.
Talvez eu vá.
Tyler Bazz